domingo, 2 de setembro de 2007

Uma resposta pessoal.


A propósito de um post no blog de Geraldes Lino sobre o programa, e ainda pela notícia de João Miguel Lameiras no Diário das Beiras, venho por este meio tentar dar algumas respostas às questões levantadas nesses dois textos, e comentários apensos.
Fico grato de o programa ter levado a algum grau de discussão, e num espaço gerido por alguém que muito prezo e que sei ser um nome importante no panorama da banda desenhada portuguesa, como o Geraldes Lino, que conto entre as amizades no “meio”. Acrescente-se a isso os pontos inteligentemente apontados por João Miguel Lameiras. Gostava de ter a oportunidade de tentar responder a alguns dos pontos apresentados, se bem que não possa ser exaustivo em todos eles.
O que primeiro gostava de deixar claro é que assumo totalmente as responsabilidades que me cabem em relação ao programa VERBD, que partilho de modo igual com o Paulo Seabra. A equipa de produção e as decisões estilísticas e intelectuais que pautaram o programa pertencem-nos completa e exclusivamente (ainda que se deva esclarecer o apoio quer da parte da produtora Black Maria e da própria RTP, naturalmente), assim como as suas limitações, erros ou falhas que os espectadores considerem existir. Todavia, sendo um programa de televisão, produzido para um canal público, para um formato muito específico (cinco programas de 25 minutos cada), a estruturação da potencialidade foi feita no interior de um pequeno espartilho: esse espartilho jamais se tornou fonte de restrições ou constrangimentos, mas simplesmente o espaço no qual poderíamos exercer a nossa total liberdade, que afirmo ter sido cumprida.
Em segundo lugar, como várias vezes deixei claro e foi mesmo afirmado no programa, no blog e noutros espaços, o VERBD nunca almejou tornar-se um programa exaustivo sobre a banda desenhada portuguesa. Tratava-se tão-somente de criar um panorama, sobretudo da contemporaneidade da banda desenhada portuguesa, e para a criação desse panorama criou-se um prisma que serviria de ponto de partida para a emergência do discurso pretendido. Esse prisma consolidar-se-ia pelos autores. Não poderíamos, nunca, falar de todos. Uma escolha era, portanto, imperativa. Como os escolher? Como fazer uma escolha que – não esgotando nada, não se querendo tornar holística ou última - se pudesse considerar, mesmo que por este ou aquele sector, pertinente para se falar da banda desenhada contemporânea portuguesa?
Há duas respostas que devo avançar neste momento, e que não têm ordem de importância. Em primeiro lugar, Geraldes Lino sabe como poucos que, pessoalmente, conheço muitos autores de banda desenhada, de vários “sectores” (como muitas pessoas querem ver e entender que funciona este mundo pequeno e compacto) e que não me pautei por esse critério de laços de amizade. Não nego, porém, que nutro amizade por alguns dos autores presentes no VERBD, não é segredo nenhum. No entanto, parecendo-me que alguns dos comentários apontam nesse sentido, digo que não poderiam ser mais erróneos.
Por outro lado, e aproveitando as palavras de Domingos Isabelinho, o meu objectivo não é o de divulgar a banda desenhada, mas o de construir um discurso crítico muito específico. Como todos os que escrevem sobre banda desenhada ou lêem sobre ela em Portugal sabem, cheguei à relativamente pouco tempo a esta área de discussão pública, em contraste com as pessoas que passaram pelo “Nemo”, pelas edições portuenses da “Quadrado”, das várias revistas, boletins e dossiers existentes. Há pessoas com muito mais experiência e conhecimento do que eu para a divulgar, com uma capacidade de escrever textos cristalinos e capazes de explicitar a razão pela qual uma ou outra banda desenhada merece ser conhecida por um grande público. Outros há, e são a fonte da minha influência, que conduzem por um caminho de verdadeira discussão, que erigem os possíveis meios de análise e crítica da banda desenhada, secundarizando a opinião pessoal e os gostos da maioria, critérios nulos de qualidade. A minha intenção é diferente. Pode ser considerada de muitas formas, “académica”, “elitista”, até mesmo “chata”, mas como todos os restantes construtores de discursos, não desejo impô-lo, apenas discuti-lo.
Logo, tendo em conta esses dois aspectos – não ter sido conduzido por meros elos de amizade e pretender criar um discurso sobre a banda desenhada balizado por uma discussão intelectual consolidada – lancei-me na selecção de alguns autores que me pareciam desenhar um panorama interessante. Alguns critérios foram taxativos: autores que estivessem “no activo”, pondo de lado autores que tenham abandonado a “cena”. Assim, com pena pessoal uma autora como a Ana Cortesão, que prezo acima de tantos outros, ficou “de fora”. Mas por outro lado, devo dizer neste passo que não considero nem a Ana Cortesão nem a Isabel Carvalho nem a Susa Monteiro “autoras de banda desenhada”, como o Lino o aponta, diferenciando-a dos autores homens. Considero-as, a estas, a outras mulheres, e a todos os homens, da mesma forma: autores de banda desenhada. Outros critérios positivos ditaram as sortes. Por exemplo, um dos anónimos indicou que alguns destes autores não tem sequer um álbum publicado... Das duas uma: ou apenas a Susa Monteiro cai nesta “categoria”, ou então entenderei “álbum” como um formato específico herdeiro da tradição dita franco-belga e reduzo a possibilidade de escolha. Se o autor dessas linhas não conhece o trabalho em formato de livros de todos os autores, não é minha responsabilidade. Seja como for, esse também não era um critério. Há autores que nunca fizeram livros e são gigantes da banda desenhada. Apenas um único exemplo: Winsor McKay. A feitura de uma banda desenhada para um formato em livro não é critério nenhum. Ainda gostaríamos de ter perspectivas muito diferentes, o que nos levou a incluir autores mais velhos e com mais experiência, como o Diniz Conefrey, o António Jorge Gonçalves e o Filipe Abranches, a outros mais velhos mas mais recentes, como o José Carlos Fernandes, a outros mais jovens e com trabalhos consolidados, como o David Soares, o Miguel Rocha e o Pedro Nora, uma jovem e um menos jovem recém-chegados à cena, como a Susa Monteiro e o Luís Henriques, e dois autores que já trabalham à algum tempo, têm muita obra publicada um pouco por todo o mundo, mas são estrelas somente em círculos mais restritos, como a Isabel Carvalho e o André Lemos. Como repetidamente afirmei ainda, os critérios jamais foram por exclusão (“este não entra”) mas sim por inclusão e construção de pertinência. O que levou a que determinados autores, excelentes, não entrassem por terem a sua “categoria” já representada, na minha/nossa perspectiva, ocupada pertinentemente.
Por outro lado, pretendíamos criar um panorama a partir da perspectiva de um grupo restrito de autores, lançando à discussão vários temas que fossem considerados, debatidos e pensados por estes autores, e não dar voz a todos (como se isso fosse possível) os autores vivos da banda desenhada portuguesa. O mesmo dirá respeito aos outros intervenientes, com todo o respeito para todos eles. Por exemplo, houve convites que foram feitos mas não puderam ser cumpridos por razões pessoais, houve mesmo entrevistas feitas mas não utilizadas (por razões que se prendem precisamente com limitações de tempo e repetição de discursos). O programa era sobre autores, e não pretendia de modo algum fazer um panorama de todos aqueles que escrevem sobre banda desenhada. Indique-se ainda que o papel da Sara Figueiredo Costa foi bastante activo, ainda que em termos de bastidores. Gostava de deixar aqui esta nota, publicamente. Mas também aqui houve uma selecção, imperativa para a clareza dos discursos que foram feitos.
A proliferação de discursos – através da inclusão de mais autores e possíveis interlocutores - levaria à sua mesma desagregação. As entrevistas a cada autor, por exemplo, levaram a conversas de cerca de uma hora e meia em média. Repare-se, todavia, o “tempo de antena” reservado a cada um desses autores nos programas apresentados. Logo, a multiplicação de intervenientes não é, à partida e sob a fórmula que seguimos, uma boa ideia.
Ainda assim, devo dizer algo mais.
No entanto, há alguma desatenção de alguns dos comentários neste post em relação ao programa, quer do seu instigador quer da parte de alguns respondentes. Talvez pelo estilo do programa arriscar na multiplicação de canais de informação (imagem, som, texto escrito), ou a particularidade da dessincronização (que não têm qualquer problema intrínseco a não ser o gorar as expectativas da ilusão naturalista dos programas de televisão), parece-me que as pessoas não notaram na presença de muitos dos artistas que dizem ter estado ausentes... sob a forma de imagens (sempre com a atribuição dos nomes, salvo um erro apontado no blog) ou de citações, surgem quase todos os nomes citados nos comentários a este post. Por exemplo, a Isabel Lobinho é mesmo reservado um espaço privilegiado (três pranchas) aquando da discussão da revista Visão. Três pranchas, pode parecer que não, mas em televisão, é muito, tendo em consideração o edifício erguido.
Aliás, os dois primeiros episódios tentaram criar uma perspectiva histórica, desde o século XIX até à revista LX Comics, que me parece ter dado entrada a um fazer contemporâneo de banda desenhada em Portugal, que ainda hoje continua. E só alguns autores (cinco, dos onze) acabam por falar das revistas Tintin, Visão e Lx Comics. Os dois seguintes episódios são exclusivamente dedicados aos autores, é certo, mas vogando por territórios tão pessoais (técnicas, obras publicadas) como gerais (perspectivas sociais, partilhas de memória, etc.). E terminámos com um episódio quase totalmente ocupado por quatro ideias sobre o ensino (com os seus directores ou responsáveis maiores, logo não faria sentido multiplicar a sua presença com os restantes professores) e com o nosso discurso de balanço final... Logo, dizer que os autores tiveram uma presença demasiada é, parece-me, erróneo.
Que existem outros autores, e de qualidades indiscutíveis, não é novidade. Mas a exaustão, repito-o, não é um caminho correcto para a assunção de um discurso que se pretende coeso e pertinente sobre a banda desenhada. Como muito bem entendeu João Ramalho Santos, a minha presença e a do Paulo Seabra (por favor, não se esqueçam que este foi um trabalho a dois, de responsabilidades assumidas em conjunto) são sentidas pela própria substância do programa.
Mas há um outro aspecto que desejo tornar claro, se bem que seja sempre impossível esgotar toda a fundamentação desta perspectiva. É que o nosso objectivo não era criar um panorama completo da banda desenhada portuguesa contemporânea, mas muito menos da banda desenhada enquanto objecto de paixões cegas e acriteriosas, mergulhando-se em obras que possam ser muito famosas, conhecidas mas que, a meu ver, são fracas em termos da linguagem, potencialidade e valor da banda desenhada enquanto modo de expressão. Os critérios foram de inclusão, mas algum grau de subjectividade não é de menosprezar (afinal, é dado adquirido do espírito humano) e uma dessas subjectividades é aquilo que entendemos ser a qualidade. A qualidade tem a ver com um determinado fazer, que se pretende adulto, correspondendo ao mundo real, às preocupações sociais do presente, às possibilidades expressivas que o ser humano possui, à capacidade de reinvenção ou alguma proximidade a uma voz autêntica, genuína, pessoal. Assim sendo, não será surpresa que alguns trabalhos derivativos e de banda desenhada comercial, de género, tenha sido preterida em nome de todos estes autores capazes de uma voz pessoal. Algures, alguém indicou que não se tinha dado atenção nenhuma aos mangakas portugueses – autores de mangá portugueses. Pois bem, julgo que a razão disso reside precisamente nessa mesma distinção. São autores de uma banda desenhada cuja tradição não nos pertence, cujas regras de construção são ligeiramente diferentes da banda desenhada europeia e ocidental em geral. Este é um ponto fraco de argumentação, eu sei, pois são autores portugueses a fazer bandas desenhadas em português e em Portugal. Logo, qual a diferença? Mas acima de tudo porque não existe nenhum mangaka português ou portuguesa, pelo menos que eu conheça, capazes de criar uma obra que lhes seja própria, pessoal, não-derivativa. E não se apressem a indicar que é isto devido a um preconceito meu, pessoal, contra a banda desenhada japonesa ou “à japonês”... Passeiem-se um pouco pelo LERBD e verão que tal preconceito pura e simplesmente não existe. Aliás, nenhum preconceito existe nas minhas leituras de bandas desenhadas. Só existem conceitos após a leitura, e a falta de qualidade só é avaliada após a leitura. A razão que me levou à exclusão dos mangakas é a mesma que me levou a não ter dedicado mais tempo a autores como Miguel Montenegro, Eliseu Gouveia, João Lemos, Ricardo Tércio e Daniel Maia... Estou desejoso de ver o livro do João Lemos e gostei muito do traço do Tércio no Spiderman Fairy Tales mas que eu saiba o Homem-Aranha não é candidato à inclusão na “banda desenhada portuguesa”. Possa vir eu a fazer um documentário sobre “autores portugueses a trabalhar para mercados internacionais” e serão eles os nomes centrais!
O desequilíbrio para com os argumentistas é mais pertinente. Saberão alguns que não sigo o mito do “autor completo”, mas por uma questão de clareza, mais uma vez, foram seleccionados antes autores que fossem capazes que criar as suas obras sozinhos (apesar de todos eles terem já trabalhado em colaborações), e sendo a porção visual a mais, perdoe-se o pleonasmo, visível, foi essa a perseguida. Tal como o LERBD se dedica à dimensão do legível e do interpretável, prestando-se a ser um espaço de um discurso mais alongado e de todo o tipo de associações suscitado pela leitura concreta, o VERBD é um espaço de um modo visual debruçando-se sobre outro modo visual... Deseja-se enquanto ponto de equilíbrio entre um instrumento de pedagogia mas também de reflexão, de retrato mas também de crítica.
Por ocasião do 17º Festival da Amadora, em 2006, fui um dos convidados, juntamente com a Sara Figueiredo Costa, a darmos algumas achegas para a exposição dos “17 portugueses”. Também aí se reservou um espaço externo e futuro para os argumentistas, e apresentámos uma lista de cerca de 20 nomes que julgamos pertinente, 20 nomes de pessoas que escrevem mas não desenham banda desenhada. 20 nomes contra os 2 que existiam originalmente. Espero que se venha a concretizar essa ideia, a efectuar essa exposição. Mas num programa de televisão não havia tempo para explorar as histórias em particular. Não o fizemos, com pesar, sobre estes onze autores. Não o fizemos dos brilhantes e bravos argumentistas existentes em Portugal (alguns deles surgiram no programa, mas não nessa qualidade, como bem apontou Geraldes Lino).
No catálogo da Amadora, a propósito dessa exposição citada, a Sara e eu delineámos esta frase: “uma escolha é uma escolha é uma escolha” (imitando Gertrude Stein). De facto, repita-se, até à exaustão: esta foi a nossa escolha, a nossa selecção, a nossa perspectiva. Debater esta escolha com outra escolha é um exercício ligeiramente desprovido de sentido, a não ser apenas uma forma de mostrarmos a nossa capacidade, quando não fomos nós a fazer essa escolha, de a fazer. Todavia, é muito saudável e desejável que esta escolha, ou mais profundamente, que as consequências desta escolha e o discurso que foi possível construir com ela sejam alvo de apreciação crítica, análise, discussão e até mesmo contestação, para que se possa, cada vez mais, construir um discurso verdadeiramente democrático, equilibrado e adulto sobre a banda desenhada.
Aliás, é mesmo nosso desejo que se sigam novas aventuras, investigações e projectos... Porque pensam que terminámos o programa com “Venham Mais Cinco”?
Vosso,
Pedro Moura